22 de abril de 2017

Ciao 'Scarpa'

(Fotografia: Facebook Astana)

Ainda há poucos dias pensava que não esperava escrever sobre um Scarponi ganhador, em boa forma e que iria ser novamente líder de uma equipa na Volta a Itália e logo na 100ª edição. Mas até já imaginava algumas possíveis abordagens para este inesperado regresso à ribalta de um ciclista de 37 anos e que até à última segunda-feira parecia estar mais próximo do final da carreira, do que propriamente de voltar a ter grandes momentos. Ao vencer a primeira etapa da Volta aos Alpes, pensei que afinal ainda havia mais para escrever sobre Scarponi. Não pensei certamente que o próximo texto seria o da despedida. 

Quando ouvi na notícia disse: "Ouvi bem?" Agarrei-me de imediato ao telemóvel e lá estava: Scarponi morre atropelado por uma carrinha. "Não é possível", pensei. Li e reli umas quantas vezes. Não sei bem porquê. Talvez à procura de algo que dissesse que afinal Scarponi estava bem. Mas não, só lia a descrição do trágico acidente. Na televisão assisti aos ciclistas da Astana e a Vincenzo Nibali limpar as lágrimas antes do arranque da etapa na Volta à Croácia. A cruel verdade é que Scarponi morreu aos 37 anos. Foi atropelado por uma carrinha num cruzamento, pouco depois de ter começado o seu treino, perto da casa onde vivia com a mulher e os seus dois filhos.

O mundo do ciclismo reagiu com grande comoção à morte de um dos corredores mais respeitados no pelotão. Respeitado tanto por aquilo que conquistou, como pela sua personalidade cativante. É comum a quem privou com Scarponi  - ciclistas, directores desportivos, jornalistas - dizer o quanto ele era marcante. A simpatia, disponibilidade, educação, alegria... Havia muitas razões para uma equipa querer contar com o italiano e não era apenas a sua qualidade como ciclista.

A forma como agiu após o final da Volta aos Alpes revela também como era dedicado à sua família. Scarponi regressou a casa ainda na sexta-feira, de carro, acompanhado por um dos massagistas da Astana, pois queria estar um pouco com a mulher e os seus dois pequenos gémeos, antes de voltar a concentrar-se no treino, a pensar no Giro100. O que era suposto ter sido apenas mais um dos muitos twits de Scarponi - que nunca teve problemas em partilhar alguns momentos da sua vida nas redes sociais - acabou por provocar uma emoção ainda maior. Na noite de sexta-feira, o ciclista colocou uma fotografia dos filhos nas suas costas, com a camisola de líder da Volta aos Alpes, que vestiu durante um dia.

E depois há aquele vídeo, no final da Volta aos Alpes, no qual Scarponi termina a dizer: "Vemo-nos no Giro." Não, já não te vamos ver e, de vez em quando, ainda não parece completamente real.

Na manhã seguinte partiu para o treino bem cedo em Filottrano (Ancona), região onde vivia. Eram 8:05 quando naquele maldito cruzamento um condutor não viu Scarponi e atropelou-o. O embate foi de tal forma violento que apesar do socorro ter sido rápido a chegar, segundo explicam os meios de comunicação social italianos, o ciclista foi declarado morto no local. Um jornal publicou umas imagens que acabam por provocar algum choque. Nelas vê-se Scarponi já tapado, ainda com a bicicleta perto de si e com a sua mulher de joelhos ao seu lado. Foi assim que a notícia deixou muita gente. De joelhos perante tal tragédia, mais uma do género que acabou com a vida de um ser humano de apenas 37 anos. Nas imagens vê-se ainda a carrinha e como o vidro estilhaçou perante o embate.

A seguir ao choque e aos momentos que se seguiram a tentar perceber o que tinha acontecido, vem a revolta. Tanto se fala e se tenta promover a segurança na estrada, de respeito para com todos e cada vez mais pelo crescente número de ciclistas ou utilizadores de bicicleta (como se preferir chamar) e, no entanto, estes acidentes continuam a acontecer em número preocupante. Alguns sites dedicados à modalidade vão dando destaque a este tipo de casos, mas claro que quando atinge um ciclista com a popularidade de Scarponi, o mediatismo é outro.

Porém, a revolta rapidamente deu lugar a um rasgo de maior objectividade e não tanto de emoção. Talvez seja a forma de lidar com algo tão inesperado. Não é o momento de "atirar pedras" ao condutor da carrinha. O homem de 57 anos que matou Scarponi e é um caso de polícia. O condutor enfrenta uma acusação de homicídio e, segundo a Gazzetta dello Sport, explicou aos agentes que não viu o ciclista no cruzamento, onde deveria ter cedido passagem a Scarponi. Este é o relato dado sobre o que aconteceu.

Em vez de raiva contra o condutor é talvez (mais uma) altura para se pensar que quando se anda na estrada, seja em que veículo for, é necessário acima de tudo respeito. Respeito pela distância de segurança, respeito pelas regras de trânsito... respeito uns pelos outros. Isto vale para condutores e para os ciclistas, sem excepções.

Agora resta-nos recordar Scarponi. Recordar as três etapas do Giro que venceu, a Volta a Itália que acabou por ser dele após a desqualificação de Alberto Contador, a Volta à Catalunha que ganhou, o Tirreno-Adriatico, o Giro del Trentino... e para sempre ficarão aqueles vigorosos festejos quando venceu na Volta aos Alpes, quase quatro anos depois da sua última vitória individual. Essa imagem marcou como não se esperava a vida do ciclista. Ao todo, foram 19 vitórias em 17 anos de carreira de um dos ciclistas mais acarinhados do pelotão.

As mensagens sucederam-se nas redes sociais. O mundo do ciclismo reagiu em peso à morte de Scarponi. Mas vou destacar uma, a de Luis Ángel Maté, espanhol que foi colega do italiano na Androni. "Penso em recordar-te a cada minuto da minha vida e contar aos teus filhos a maravilhosa pessoa que eras. Estarás sempre connosco." Perante uma morte tão precoce, inesperada e trágica, Maté (Cofidis) escreveu o que agora é o mais importante: recordar os melhores momentos e garantir que os filhos saibam o pai que tiveram, já que ficaram tão cedo privados dele.

O luto no ciclismo faz-se em competição. Os corridas não param e os ciclistas da Astana merecem uma palavra para destacar a forma como hoje foram para a estrada na Volta à Croácia e como este domingo estarão na Liège-Bastogne-Liège, quando se compreenderia que preferissem resguardar-se nos próximos dias. Mas ao competir estão provavelmente a fazer a maior homenagem ao colega que sempre lutou por eles e com eles.

Resta dizer: Ciao 'Scarpa'.

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